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Galinha Preta / Terror Revolucionário – Live Conic Split 7”EP
Text: Pedro Poney
originally published ELZINE (Japan) #22
2016/7


O Rafael me pediu pra escrever uma resenha para esse split de duas bandas tão queridas. Não gostaria de repetir o mesmo texto-chavão cheio de clichês vazios disfarçados de palavras-enigma como “petardos” e outras besteiras que já lemos mil vezes. Vamos ver. Vamos falar de um disco de hardcore-punk gravado ao vivo em Brasília, Brasil, lançado em 2016.

A virtualidade é uma marca dos nossos tempos. O próprio convite pra essa resenha surgiu da diluição das distâncias promovida pelo virtual. E há real no virtual, muito real, a verdadeira oposição ao virtual é a presença. O que isso faz da ausência então?

O rock é o contrário disso tudo. Presença ao absoluto. Só faz sentido pleno no choque do corpo provocado pelas ondas sonoras e no choque dos nossos corpos com outros corpos.

Por demandar corpo e presença, o rock também demanda espaço. Assim, na nossa mitologia própria também passamos a cultuar esses lugares de encontro. CBGB, Max’s Kansas City, Hammersmith Odeon, Fillmore… cada cidade vai cultivando seu espaço. De fato, há uma espécie de comunhão em torno do amor que temos por essa música. E em Brasília, esse lugar é o Conic.

Trata-se de um conjunto de blocos, galerias e escritórios no coração da zona central da cidade. Fruto da extrema setorização de Brasília, prevista por um modelo de loucas pretensões racionalistas da utopia moderna, o Conic originalmente se chama Setor de Diversões Sul (com alguma ironia involuntária).

E se a finalidade última da ‘ética faça-você-mesmo’ do punk rock é promover autonomia organizando a própria diversão, foi exatamente isso que o Gilmar do ARD começou a fazer quando montou no Conic a filial da Devil Discos de São Paulo. Isso em 1987.

Esse parece ser o evento inaugural do encontro de alma entre o Conic e o nosso underground. Desde então, o espaço sempre foi palco para o que circula e faz circular esse universo subterrâneo: lojas de discos de heavy metal – a Berlin Discos continua lá na resistência – lojas de skate, de hip hop, de quadrinhos. Tudo que de alguma maneira dá um respiro de alívio às nossas diferenças, tão difíceis de serem afirmadas nessa cidade de população com uma normalidade massacrante.

Mas o Conic não é apenas um espaço de compra e venda de mercadorias subterrâneas. Foi o lugar de shows e eventos que marcaram a história da nossa produção cultural, encontros de movimentos sociais, espaço de mobilização política divergente. Sem falar na fauna urbana de shows, botecos sujos, puteiros, sede de torcida organizada e cinemas pornôs que compõem o universo doido e contraditório das ruas, matéria viva do nosso underground.

Bem, foi nesse lugar que as bandas Terror Revolucionário e Galinha Preta resolveram fazer e registrar um show em outubro de 2015. São poucos mais de cinco minutos de cada lado registrados com impecável qualidade de produção, além de trazer cada grupo fazendo uma versão da outra.

Se rock é precisa de corpo e espaço, o hardcore-punk é a versão mais radical desse processo intenso de sentir a música na carne. Quem sabe disso melhor é quem já sentiu a guitarra do Bones como uma motosserra na barriga. E de alguma maneira as duas bandas aqui transitam nesse universo dos filhos legítimos e bastardos do Discharge.

O Galinha Preta soa cada vez mais como a atualização do século XXI das bandas da primeira geração do punk brasileiro. Sabe aquela simplicidade cativante do Fogo Cruzado, Psycóze, aquela abordagem crua sobre o cotidiano mais banal que acaba revelando muito mais sobre o mundo que vivemos do que a aparente simplicidade dos versos. A diferença talvez esteja no bom humor do mestre-do-som Frango, que sabe que uma boa piada é uma grande arma.

O Terror Revolucionário soa muito mais violento. O crustcore de bandas como Doom e Extreme Noise Terror são as principais referências aqui, mas há muito mais. Com uma trajetória de 17 anos de produtividade incessante no underground, o Terror vai acumulando influências do punk brasileiro dos anos 80, do grindcore mais podre e mesmo do crossover/thrash. A música “Morrer/Partir” (que nome!) mostra a genialidade do Capitão Barbosa em transformar a guitarra em instrumento de violência.

As referências externas são muitas e bem-vindas, mas o que talvez torne as músicas desse registro mais especiais é que para além do “hardcore kaos” ou do “hardcore livre” praticado e autonomeado pelas próprias bandas, há algo de tipicamente brasiliense no som que escutamos aqui. Algo difícil de definir com palavras, talvez a melhor dela seja “peão”, no melhor dos sentidos que essa expressão jamais possa ter. O importante é o seguinte: quando nos aproximamos realmente do local é quando podemos ter acesso ao que há de mais universal.

E como o melhor do underground é quando se mistura a produção com a própria vida, a escolha do Conic para ser o espaço de registro desse material não poderia ser mais acertada. A história de vários membros das bandas está imbricada com o Setor de Diversões Sul, simplesmente porque são trajetórias que são inseparáveis da própria produção underground do Distrito Federal.

Fellipe CDC trabalhou na extinta Head Collection. Frango começou a mexer com som experimentando no antigo estúdio Caustico Lunar (lugar de registro de vários clássicos esquecidos da nossa cidade). Barbosa foi balconista da RVC Discos e por muitos anos foi o cabeça – e mente maligna – do Caga Sangue Thrash, que transformou o underground brasiliense na década passada. Hudson também ajudou a vender discos na Berlin por um tempo. Adriana Maria frequentava o encontro do punks no começo da década de 90 na praça central do Conic. E todos eles passaram muitas vezes por ali e continuarão a passar.

A cidade está viva, nós estamos vivos. E o underground é o puro fluxo e troca dessa duas instâncias. Vida longa ao Terror, ao Galinha e ao Conic. Vida longa ao underground.

Pedro Poney frequenta o Conic desde que começou a gostar de rock, onde comprou sua primeira camisa de rock, uma com a capa do Kill’em All.